Artigo de Juarez Duarte Bomfim



A morte é uma festa. O velório daimista

 

Lá pelas tantas, altas horas da madrugada, nos intervalos entre um hinário e outro, as pessoas se entretêm conversando baixinho, contando histórias e causos do falecido, muitas delas jocosas.  A oferta de comida e bebida não-alcoólica é farta e isso dá um caráter festivo à efeméride. A criançada presente cria um clima de alegre algazarra, contidas nos excessos por adultos zelosos.

Por Juarez Duarte Bomfim

Último inimigo a ser vencido

Nos hinos da Doutrina do Santo Daime é recorrente o uso dos termos “viagem”, “viajar”, “viajou”… e que tem vários significados. Pode significar o estado de consciência expandida sob efeito da sagrada bebida Daime/Ayahuasca, ao qual se dá o nome de miração; pode significar uma viagem astral no estado de vigília, que também é parte da miração; ou pode significar a morte física de alguém. Este termo — morte — não utilizado, já que enquanto doutrina espírita, acredita-se que o ser humano é essencialmente espírito e o espírito não morre, faz uma passagem (viagem).

Pois a morte – conseqüência do pecado – é o último inimigo a ser vencido (1). Daí a importância de “preparar terreno”. No dizer de Froés, a doutrina cantada do Santo Daime “explica a morte como uma passagem para outra vida. É a crença na reencarnação, mas para ser possível, a pessoa deve realizar uma preparação correta durante a vida”(2).

A viagem (passagem) é para um local determinado: o reino dos céus(3), que é o domínio de Deus no coração humano, apregoado por Jesus, tendo o privilégio de Jesus Cristo Redentor e a Virgem Soberana Mãe viajarem ao nosso lado.

Lá nos Hinos Novos (Cruzeirinho do Mestre), considerados a síntese e resumo da Doutrina, Mestre Raimundo Irineu Serra Juramidã afirma “todos querem ser irmãos, mas não têm a lealdade / para seguir na vida espírita que é o reino da Verdade” (Hino nº 118) Será essa a afirmação da concepção espírita da Doutrina de Raimundo Irineu Serra?

Consideramos que sim. A Doutrina do Santo Daime é uma doutrina espírita, replantada nos rincões da floresta amazônica, onde esse “saudoso e eminente maranhense”, “instrutor por mais de seis décadas” no Estado do Acre, “legou à humanidade um manancial fulgurante, rico e belo de precioso conteúdo” evangélico, nas poéticas palavras de Sebastião Jacoud (4).

No cristianismo moderno, a crença na reencarnação dos mortos sobrevive nas correntes espíritas, havendo ainda, entre as doutrinas ayahuasqueiras a Barquinha de Mestre Daniel Pereira de Mattos e a União do Vegetal do Mestre José Gabriel da Costa.

Pensamos que uma doutrina ayahuasqueira necessariamente é uma doutrina espírita, pois ao tomar essa bebida de “poder inacreditável” — “liana dos espíritos”, “vinho dos mortos”, “vinho dos espíritos” — o usuário entra em contato com o mundo invisível, onde encontra entidades desencarnadas e seres de outros planos astrais, característica espírita.

O fenômeno de “receber” hinos é mediúnico, semelhante à psicografia e a psicofonia. E a mediunidade um fenômeno espírita, de comunicação com o mundo invisível.

E a licença divina para uma outra oportunidade na Terra (reencarnação) é a prova inconteste do amor e misericórdia de Deus por seus filhos. É a oportunidade da reparação, da regeneração, do cumprimento de missão e iluminação espiritual.

Sendo assim, em muitas tradições religiosas “a morte é uma festa”, no dizer do historiador baiano João José Reis (5) ao analisar hábitos e costumes de comunidades afro-brasileiras oitocentistas.

Mestre Irineu, no hino nº 45, “Eu estava em pé firmado” do Hinário O Cruzeiro Universal, canta entusiasticamente a sua futura passagem para o mundo espiritual.

Eu vivo alegre sempre,

O meu consolo é só cantar

Porque tenho uma esperança

De breve me separar.

De breve me separar

Com Deus e a Virgem Maria.

Talvez vocês não achem

Outro irmão com alegria.

A seguir, faremos uma sucinta descrição etnográfica de um velório daimista, tomando como referência o Centro de Iluminação Cristã Luz Universal Juramidã – CICLUJUR, centro livre daimista situado na Vila Irineu Serra (Alto Santo), em Rio Branco – Acre. Registramos previamente que os distintos centros (igrejas) e linhas daimistas podem ter diferenças rituais entre si.

O velório daimista

Quando algum adepto da Doutrina do Santo Daime falece (desencarna) o corpo é velado na sede do culto, no salão de serviços, e a irmandade acorre à cerimônia fúnebre convenientemente fardada.

O formato atual desta singela cerimônia teve início no velório do próprio Mestre Irineu, em 06 de julho de 1971. Este cerimonial fúnebre é referência e modelo para todos os outros que o sucederam.

O falecido é velado e será enterrado trajando a farda branca, com uma Estrela de Salomão (importante ícone da Doutrina) ao peito, feita de papelão com pintura prateada.

A urna funerária é colocada aos pés da Mesa de Centro, e é vigiada por quatro guardiões, duas mulheres e dois homens fardados da casa, separados por gênero, que montam guarda espiritual ao lado do féretro.

A arma de defesa contra o “inimigo” (6) é a oração. Daí que os veladores do defunto devem se manter em estrito silêncio, em atitude de oração. No decorrer da longa noite são rendidos por nova equipe, pois não se deve deixar vazio o posto.

“Eles rezam direto, montam guarda espiritual, devem manter-se em silêncio, devem ser dois homens e duas mulheres fardados da casa, nunca deve-se deixar vazio o posto. É um trabalho muito gratificante e bonito, de verdadeira caridade espiritual”(7).

O velório é realizado com os participantes sentados nas cadeiras enfileiradas no salão, na mesma disposição do ritual de Concentração, com divisão por gênero.

No início (abertura) da sentinela, quando a irmandade e os familiares se reúnem, reza-se o Terço. Logo após, começa a apresentação de hinários, cantados a capela, sem instrumentos musicais ou maracás. A escolha dos hinários cantados fica a critério dos dirigentes do Centro Livre e dos familiares do defunto. Se o falecido for dono de hinário, essa é uma oportunidade ímpar para a sua apresentação.

A depender do prestigio social do falecido e dos hinários a serem cantados, a diretoria do Centro decide sobre o vestuário, se farda azul ou branca. No CiCLUJUR, se o hinário a ser cantado é O Cruzeiro Universal, obrigatoriamente é trajada a farda branca.

Quando do falecimento do Mestre Irineu, a irmandade se apresentou ao velório e enterro de farda branca, e cantou-se o hinário O Cruzeiro Universal.

Depõe Roberta Graf, fardada do CICLUJUR: “presenciei a irmandade trajando farda branca no velório da dona Percília Matos da Silva, em que foi cantado O Cruzeiro todinho e o hinário dela. O cortejo foi a pé, na chuva e na lama da Vila Irineu Serra até o cemitério do Alto Santo, dia 27 de outubro de 2004… Inesquecível…”

A morte é uma festa

Como vara-se a longa noite, entre um e outro hinário cantado é colocado música mecânica, cds de hinários cantados sem maracás ou só instrumental. É facultado o uso da palavra aos presentes que queiram homenagear o falecido, proferindo palavras elogiosas, declamando poesia ou entoando rogos e preces.

A serventia do Daime fica a disposição daqueles fardados ou visitantes que manifestem desejo de comungar da Santa Luz.

Lá pelas tantas, altas horas da madrugada, nos intervalos entre um hinário e outro, as pessoas se entretêm conversando baixinho, contando histórias e causos do falecido, muitas delas jocosas.  A oferta de comida e bebida não-alcoólica é farta e isso dá um caráter festivo à efeméride. A criançada presente cria um clima de alegre algazarra, contidas nos excessos por adultos zelosos.

Se for um defunto concorrido, dezenas de adeptos da doutrina acorrem ao velório, originários de outros centros livres, assim como uma multidão de visitantes não-adeptos. Nesta noite, a fiscalização é relaxada quanto ao vestuário dos visitantes, principalmente das mulheres, que vão dar o seu adeus ao falecido vestindo calça, roupa de cor vermelha, às vezes decotada.

Assim, a noite insone se transforma em um encontro de geração de sociabilidade, estreitamento dos laços de fraternidade e, principalmente, conforto emocional para os familiares que sofrem a perda do ente querido.

Chegada a hora do enterro

Ao amanhecer do dia, pouco antes do carro funerário chegar, é cantado de pé e entusiasticamente os Hinos Novos (Cruzeirinho do Mestre), na sede de serviços; ou são cantados no trajeto do cortejo a pé. Às vezes, por pedido prévio do finado — ou da família — o caixão é levado para dentro do túmulo do Mestre para passar alguns minutos apoiado nos bancos lá existentes.

Quando o enterro é feito no Cemitério do CICLU Alto Santo, o desencarnado terá o privilégio da companhia dos jazigos de todos os primeiros e principais adeptos da Doutrina do Santo Daime. Será enterrado próximo às covas de Antonio Gomes, João Pereira, Germano Guilherme e Maria Damião – entre outros.

No enterramento, canta-se o último hino do Mestre Irineu, “Pisei na Terra fria” e os homens (também algumas mulheres) se sucedem cobrindo a sepultura com pazadas de terra fria. Alguns lançam flores.  Na despedida, as pessoas fazem preces individuais em silêncio. Os familiares e amigos do desencarnado voltam para seus afazeres cotidianos com a certeza de missão cumprida.

Meu corpo na sepultura

Desprezado no relento

Alguém fala em meu nome

Alguma vez em pensamento?

Para que o falecido seja devidamente encaminhado ao mundo espiritual, posteriormente reza-se a Santa Missa daimista de 7 dias, 30 dias e ano após ano, sempre às quatro da tarde, hora do enterro do Mestre Raimundo Irineu Serra, já no distante ano de 1971, quando ele saiu deste mundo para a eternidade.

Notas

(1)   “A morte corporal, à qual o homem teria sido subtraído se não tivesse pecado”, é assim “o último inimigo” do homem a ser vencido (1 Cor 15:26).

(2)   FRÓES, Vera. Santo Daime. Cultura amazônica. História do povo Juramidã. Manaus: SUFRAMA, 1986, p.105.

(3)   Expressão usada mais de trinta vezes pelo evangelista Mateus

(4)   Jornal Rio Branco, de 14 de maio de 1975 apud COUTO, Fernando da La Rocque. Santos e xamãs. 1989. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Universidade de Brasília, p. 43.

(5)   REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos Malês (1835). São Paulo, Brasiliense, 1986.

(6)   Satanás é o inimigo numero um de Deus.

(7)   Depoimento de Roberta Graf, fardada do CICLUJUR.

Artigo publicado originalmente em 2005, aqui revisado. Agradeço a colaboração da Dra. Roberta Graf, pelas valiosas informações transmitidas para esta modesta etnografia.


Publicado em: 05/11/2015

Autor: Juarez Duarte Bomfim

Fonte: jornalgrandebahia



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