Artigo de Rodrigo Borges Conti Tavares



Considerações sobre o trabalho de Raimundo Irineu Serra

 

A história do Santo Daime é a história de um povo sofrido, vindo na maior parte das regiões norte e nordeste brasileiro, carente de recursos humanos e muitas vezes de recursos naturais. Representantes fiéis da cultura que se desenvolveu nestas regiões e ainda hoje lá são cultivadas, nos festejos regionais, nas celebrações religiosas, na arte e na música, se provaram trabalhadores incansáveis a despeito das dificuldades vividas ao longo dos séculos. Desta forma, ao escrever minhas impressões pessoais acerca da doutrina de Raimundo Irineu Serra, escrevo sobre a memória destas famílias - que foram as pioneiras - expressões ímpares da vontade humana, dando a eles um caráter de imigrantes da espiritualidade.

Irineu Serra sempre foi um devoto e de família rígida nas práticas católicas, mas que naquela região de dificuldades e grandes distâncias o clero nem sempre estava presente, fazendo com que os ritos fossem permeados por uma forte influência do povo, e aonde o sagrado e a religiosidade assumiam os contornos próprios de um catolicismo popular; dos rosários realizados nas casas vizinhas, dos benditos e preces recebidas, da vida em comunidade e dos líderes espirituais que nasciam da própria necessidade de liderança.

Através da memória desses seguidores a doutrina do Santo Daime seria influenciada, milhares de quilômetros distantes de suas terras de origem, quando por volta de 1914 Raimundo Irineu Serra chega às terras acreanas. Por quase vinte anos ele iria conhecer a Ayahuasca em seu ambiente natural, a floresta, entre os caboclos e Índios da Amazônia, remontando a época do império Inca. Um período que os historiadores classificam de aprendizado, onde ele aprendeu os segredos da mata, a confeccionar a bebida, a falar Tupi-Guarani, demonstrando com isso que neste percurso ele não só adquiria maturidade como homem, mas também como habitante da floresta, totalmente integrado a natureza. Foi após esta fase de provação e aprendizado que Irineu Serra deu início a sua missão na terra, que viria a ser a doutrina do Santo Daime, como nos conta Luiz Mendes do Nascimento.

“E muitas vezes ele teve dúvidas. A Rainha passou a lhe aparecer, e diante dela estava tudo certo. Mas quando ela desaparecia, vinha a dúvida. Existe um estágio espiritual que, daqui até lá nesse estágio, vai verdade misturada com mentira. Elas vão se entrelaçando. Quando ultrapassa aquele muro, só tem verdade, mas depois que o Mestre passou por todas as dúvidas é que ele começou realmente a missão”.

A doutrina que conhecemos começaria de fato em 1931, onde os trabalhos eram realizados em suas próprias casas, aquele grupo pequeno, reunidos em torno de uma mesa e um cruzeiro*. Aceito como líder natural, Irineu Serra daria muitas palestras, ensinando o povo a trabalhar com a bebida que nesta mesma época já recebia o nome de Daime. É nesse período que ele começa lentamente a cimentar seus ensinos, ao passo que ia recebendo da Rainha da Floresta as instruções de como o trabalho tinha que ser desenvolvido. Apesar das suas raízes com a bebida, entre os índios e os caboclos da floresta, sua memória religiosa e o reconhecimento da sua professora espiritual passaram a ter papel fundamental no desenvolvimento da liturgia, entretanto, nunca negando seu aspecto natural. Era a tão sonhada união entre o homem, a natureza e os planos celestiais na terra.
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*A Cruz de duas traves, também conhecida como Cruz de Caravaca, provavelmente trazida ao Brasil pelos primeiros missionários, pois também é chamada de a Cruz Missioneira, foi o primeiro símbolo da doutrina do Santo Daime. Por muitos é considerada a verdadeira cruz de Cristo, pois ela teria sido feita com partes da cruz onde Jesus foi crucificado. Segundo os mais antigos seu significado na doutrina, representado pelas duas barras, é o da primeira e segunda vinda de Cristo a terra. Esta cruz ainda hoje é muito popular nas regiões norte e nordeste do Brasil, aonde no dia 26 de abril de 1500, quatro dias após chegarem ao novo continente, num banco de coral na praia da Coroa Vermelha no litoral sul da Bahia, foi rezada uma missa de Páscoa aos pés de um grande cruzeiro; a primeira de tantas que desde então foram celebradas naquele que veio a tornar-se o maior país católico do mundo.

Em posse desse entendimento não é difícil pensar que a doutrina de Irineu Serra nunca foi intencionada para o formalismo, mas sim uma doutrina nascida da própria necessidade do grupo de se organizar em torno da Ayahuasca e tomar uma direção. No passado, entre os povos da floresta, a bebida era utilizada para fins tanto benignos quanto para ganhos pessoais, e foi através de Irineu Serra que o Daime se tornou um veículo unicamente de curas e ascensão espiritual, mudando para sempre a imagem da bebida. Existem aqueles que afirmam ser a abordagem estritamente dignificante de Irineu Serra um fator fundamental para o atual panorama xamânico da América do Sul, visitada por centenas de turistas em busca de seus segredos e mistérios.

Em 1945, devido ao crescimento urbano, Irineu Serra se muda com seu grupo para a colocação que receberia dele o nome de Alto da Santa Cruz*, pelo fato das terras serem mais altas do que as demais, onde se via uma cruz abençoando a cidade. É nessas terras que ele iria concretizar as últimas medidas referentes a liturgia, terminar seu trabalho na terra e receber a patente de chefe desta missão. É nessas terras que a doutrina viria a se tornar reconhecida no Acre, pelas curas recebidas e o caráter de seu líder, vindo a ser popularmente chamada de “Alto Santo”.
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*Coincidentemente Santa Cruz também foi um dos primeiros nomes dados ao Brasil no século XVI. De profundo caráter religioso, este título brasileiro seria mais tarde sobrepujado pela denominação popular de uma rica árvore nativa exportada para a Europa. Chamada pelos navegantes de Pau Brasil, devido a sua coloração avermelhada, se tornou a referência do novo continente entre as rotas marítimas que ligavam os principais portos comerciais da época. Para alguns estudiosos este foi um fato marcante da nossa história, onde o poder do materialismo subjugou a crença espiritual dos primeiros exploradores que aqui pensaram estar pisando no paraíso.

É sabido que o Mestre lutou a vida inteira para reconhecer socialmente a sua doutrina, devido ao forte preconceito sofrido no início, mas não podemos esquecer que o próprio Mestre, quando questionado por autoridades externas, sempre optou pelo Daime. Um dos fatos mais marcantes da sua trajetória é a do momento em que a sede do Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento, em São Paulo, da qual o Mestre fez parte nos anos 60, questiona as práticas da bebida. Sua resposta foi imediata. “Se não querem o meu Daime, também não me querem, eu sou o Daime e o Daime sou eu”, ele disse. Com isso ele se desligaria do Círculo Esotérico e mais uma vez nos daria provas de que o seu comando não era terreno, mas vindo do astral, da Rainha da Floresta, sua eterna guia - a Virgem da Conceição.

Desde seus primeiros passos no Acre que Irineu Serra se depara mais uma vez com uma relação escassa entre o povo e o governo, onde colônias eram fundadas seguindo a mesma ordem das pequenas cidades e vilas do nordeste do país - uma organização informal onde a cooperação era uma forma natural de sobrevivência. O povo caboclo do Acre, largamente formado por imigrantes, se fez à custa do próprio esforço e trabalho, na maior parte das vezes convivendo com os índios e a mata em regime de harmonia e troca, onde pequenas cidades aglutinavam o resultado do trabalho das comunidades adjacentes. Dentro deste contexto não podemos caracterizar a doutrina de Irineu Serra como sendo “contemporânea”, mas sim uma doutrina onde a memória de Jesus Cristo era cultivada em absoluto isolamento e alheamento das práticas religiosas dos grandes centros, aonde, desde a antiguidade, vem sendo manipulada e direcionada para a formação de castas, ortodoxia e conglomerados políticos. Na Amazônia, no entanto, a doutrina era praticada dentro dos moldes naturais do homem, de ascensão e cura, de resgate e iluminação. Uma união entre o homem e a natureza sem a necessidade de intermediários, fruto da própria humildade de propósito. A intermediação estava presente na própria divindade da bebida, onde a ela o grupo recorria em busca de aconselhamento e curas, fortalecendo assim os laços da comunidade. É na vastidão da floresta que estes bravos pioneiros da espiritualidade buscavam o encontro com Deus, através da bebida sagrada, alheios de que a humanidade os desconhecia.

Mestre Irineu desde o início ensinou seus seguidores a rezar. Sua filosofia sempre foi a da simplicidade, onde a prece, a meditação e o silêncio os levavam a se despir de toda e qualquer interferência externa, quer fossem elas materiais ou não. Com esse pensamento Irineu Serra ensinou seus discípulos a ouvir o que o Daime tinha a dizer, se era do merecimento de cada um, e apresentou seu trabalho espiritual como um veículo de comunicação com os seres divinos e as esferas superiores do universo, desaconselhando e refutando qualquer tipo de intermediação, por saber e ensinar que o Daime nunca manda recado... Ele mesmo diz o que tem a dizer. No silêncio do salão cada um dava conta e respondia por si próprio, trabalhando em prol do coletivo através da projeção astral, ensinando que a autoconsciência e o livre arbítrio são requisitos fundamentais da espiritualidade. Do contrário seríamos também cobrados pelos atos alheios, sem o benefício da ignorância, salvo nos casos das crianças, estas sob a responsabilidade direta de suas famílias. Não diferente do plano astral, seu salão levava à todos a perfeita realidade encontrada após o desencarne.

Os hinos, instruções do astral, nos foram apresentados através da profunda memória destes seguidores, junto como uma forte influência da Amazônia e seus mistérios. O ritmo compassado e o timbre de voz também nos levam ao tempo dos sertões, onde as preces eram elevadas aos céus por aquele povo sofrido. A autenticidade e valor das palavras e melodias é fruto da fé e do reconhecimento dos planos celestiais, onde lá eles encontraram o abrigo e conforto que lhes era negado aqui na terra. Através dos hinos o grupo compartilhava entre si os ensinos recebidos, as curas e os adiantamentos pessoais. Como contam alguns, o Mestre gostava de cantar os hinos sem interrupções, um após o outro, não dando margem para que a mente divagasse.

Pelo seu aspecto universalista, também presente no primeiro nome de seu centro, chamado de “Centro Livre”, a liturgia do Santo Daime nasceu, se desenvolveu e atingiu maturidade como um ritual unicista, sem preâmbulos e alterações, fato esse que o motivou a repetir, diversas vezes, que não se inventasse nada, pois o povo não ia dar conta depois. Sua liturgia viabilizou nos trabalhos de concentração e cura o recebimento dos ensinos e das curas, para que nos serviços de hinário fossem “passadas a limpo” e apresentadas a todos conforme o merecimento de cada um. Dentro dessa simplicidade a doutrina se formou e se solidificou como um verdadeiro trabalho de educação espiritual às almas.

Um cruzeiro, uma vela e flores – estas últimas para ficar mais bonito - como ele gostava de dizer, e uma garrafa de Daime são os elementos do seu trabalho. O silêncio, a reza e os hinos, a concentração e a consciência, como elementos fundamentais de sua filosofia espiritual nos levam com certeza as raízes do Santo Daime, da comunicação direta com a floresta e os seres divinos - independentemente de onde estivermos - se na vontade de praticarmos o bem, a humildade e a harmonia, reconheçamos seu valor.

“...Se dois dentre vós, sobre a terra, concordarem a respeito de qualquer cousa que, porventura, pedirem, ser-lhes-á concedida por meu Pai, que está nos céus. Porque, onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, ali estou no meio deles” (Mateus).


Publicado em: 08/08/2008

Autor: Rodrigo Borges Conti Tavares

Fonte: afamiliajuramidam.org



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