1. Lua Branca
Numa noite de sábado do ano de 1914 [1] em que a lua se fez cheia, um jovem seringueiro nordestino, descendente de escravos africanos da antiga província do Maranhão, experimentou a ayahuasca pela primeira vez no trabalho espiritual de um xamã conhecido como Crescêncio Pisango[2]. O jovem chamava-se Raimundo Irineu Serra, trabalhador negro nas selvas do Alto Rio Acre, região que ainda hoje se encontra coberta de espessas matas, numa grande fronteira aberta que divide três países - Bolívia, Peru e Brasil. A primeira canção recebida por ele, do hinário que então inicia, é uma valsa que saúda a Lua Branca, e lembra essa primeira experiência com a ayahuasca, que havia acontecido exatamente sob a proteção da lua cheia [3]. A Mãe Divina do Coração mora no céu e aparece como advogada capaz de perdoar. A Mãe se confunde com a natureza, como uma flor mais bela, mais delicada. É a lua branca protetora, o brilho da estrela do universo, simbolizando a mãe espiritual da humanidade.[4] O simbolismo cósmico lunar desdobra-se da lua branca para a senhora divina, deusa universal, às flores e às estrelas. Modalidade do Sagrado manifesto no imaginário que constitui a Doutrina de Juramidam, revela uma estrutura particular da sacralização da natureza. Uma modalidade do sagrado expressa por meio de um modo específico de existência no cosmos [5]. Esse primeiro hino do mestre Raimundo Irineu Serra, Lua Branca, foi recebido ainda no Peru.[6] A partir deste, e por quarenta anos seguidos, Mestre Irineu recebeu os 130 hinos que compõem "O Cruzeiro Universal", 129 com melodia e letra [7]. Entre 1928 e 1930, quando se mudou para Rio Branco, recebeu outros cinco cânticos com a força daquela bebida ritual, hinos que seriam a chave da formação da sua doutrina.[8] Dessa maneira a Doutrina do Santo Daime, outro nome como é conhecida, começa a dar os seus primeiros passos na cidade de Rio Branco, localizada às margens do Rio Acre e capital do estado do Acre, na parte ocidental da Amazônia brasileira. O hino Lua Branca representa o rito de iniciação que Irineu Serra se submeteu para se tornar o mestre fundador de uma escola espiritual. Essa escola - ou império espiritual - recebido da Virgem da Conceição é organizada na forma de um ritual que envolve orações, cânticos, bailados e a ingestão da ayahuasca como um veículo sagrado e fundamental para a recém-criada doutrina [9]. E a Doutrina do Santo Daime, que se inicia, inaugura com sutil delicadeza o singelo culto mariano [10] isto é, o culto à Virgem Maria, Mãe de Jesus, que a partir de então se apresentaria em toda a Missão. Raimundo Irineu Serra era um maranhense - conforme afirmamos acima - negro, de 1,97 metros de altura, nascido em São Vicente do Ferrer (Maranhão), em 15 de dezembro de 1892 e falecido em 06 de julho de 1971, na cidade de Rio Branco. Migrou para o Acre atraído pela extração do látex da seringueira, no período denominado de "Ciclo da Borracha", em que se observou um intenso fluxo migratório do nordestino assolado pela seca em direção aos seringais amazônicos. Trabalhando como seringueiro no Peru, juntamente com os irmãos Antonio e André Costa, Irineu Serra conheceu a bebida milenar designada como ayahuasca, utilizada imemorialmente pelas sociedades indígenas da região em seus rituais xamânicos, e que ele viria a consagrar mais tarde como Santo Daime, uma bebida sagrada. A história do surgimento da doutrina está relacionada igualmente a uma senhora de nome Clara que lhe aparecia em visões. A entidade espiritual se apresentou depois como sendo a própria Rainha da Floresta, Nossa Senhora da Conceição, Mãe de Jesus. Passou a ser a tutora de Irineu Serra em seu aprendizado com a ayahuasca [11] e lhe deu instruções para que se preparasse, que ela tinha uma missão espiritual para entregar a ele. Irineu Serra veio a se submeter a uma rigorosa dieta de oito dias, sem comer nada mais que macaxeira insossa e chá sem açúcar, além de sequer poder ver a saia de uma mulher, a fim de poder tomar ayahuasca e aprender sozinho. Nesses dias de intensas mirações [12] teve visões e a sensação de que tudo sabia e adivinhava. Penetrou no mundo encantado onde até os paus falavam, as coisas se mexiam, os caboclos velhos antigos chegavam perto dele, que os recebia sem nenhum medo. Quando aparecia coisa demais, ele que andava armado com um rifle na bandoleira, dava um tiro para o alto, para afugentá-las.[13] Até que numa dessas oportunidades Irineu Serra sentou-se na sacupema de um pau (espaço delimitado pelas raízes de árvores frondosas como a sumaúma) e ali mirando viu a lua vir chegando, se aproximando dele, com uma águia pousada no centro. Nessa miração [14] uma Senhora lhe apareceu dentro da lua [15]. Essa Senhora vinha lhe entregar a doutrina e revelar os mistérios. Disse que ele ia sofrer e trabalhar muito, mas não esperasse receber nenhuma recompensa material, só espiritual. Essa Senhora - consagrada como Mãe, Rainha, Lua Branca - identificada com a Virgem Mãe Católica, Nossa Senhora da Conceição [16], passa a lhe entregar a doutrina do Santo Daime através dos hinos, que são as revelações dos mistérios divinos. É essa passagem da Senhora, que vem comunicar-se com Raimundo Irineu Serra através da lua, que está relacionada com o hino "Lua Branca", que inicia o hinário mais importante da doutrina, o Cruzeiro Universal, o "tronco da missão", do qual floresceram todos os outros hinários [17].
Notas:
[1] BAYER NETO data de 1914. A Relíquia do Iagé. In: O Verdadeiro Inca. [8] BAYER NETO, Eduardo. A Relíquia do Iagé.
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